Zichronos de Glückl von Hameln, uma obra de caráter memorialista escrita por uma matriarca judia de Hamburgo na passagem do século XVII para o século XVIII, sob o impacto do advento da heresia sabataísta e da Guerra dos Trinta Anos, antecipa, por meio das perplexidades e das dúvidas que enuncia, um novo topos literário judaico-alemão, fundado não mais nas certezas da doutrina religiosa e dos ensinamentos tradicionais, mas na percepção da distância crescente que separa da vida tal doutrina, na percepção do abismo que se abre entre o mundo tal qual ele deveria ser e o mundo tal qual ele é, e que, portanto, parte em busca por maneiras ou respostas para se franquear tal distância, ou se volta, simplesmente, sobre o crescente estranhamento e sobre a crescente alienação. É sobre este imenso vazio e sobre estas interrogações que se construirão, como pontes dirigidas ao infinito e fadadas a nunca alcançarem seus destinos, as obras-chave da literatura judaica moderna dos séculos XIX e XX. Se o romance judaico-alemão moderno surge como representação ou como tentativa de superação deste abismo, a narrativa autobiográfica de Glückl von Hameln pode ser compreendida como um prelúdio a este gênero fundado na incompreensão, na perplexidade e na nostalgia pelo mundo impregnado de sentido. Zichronos, by Glückl von Hameln, a memoir written by a Jewish matriarch from Hamburg at the end of the 17th and at the beginning of the 18th century, under the impact of sabataism and of the War of 30 Years, anticipates a new German-Jewish literary topos by means of the perplexities and doubts it represents. This topos is no longer based on the certainties of the religious doctrine and of traditional wisdom, but on the perception that an abyss exists between the world as it is and the world as it should be. Thus, literature searches for ways to bridge the distance between metaphysical doctrines and human realities, or represents the increasing estrangement and alienation ensuing from this distance. Key works of German-Jewish Literature in the 19th and 20th centuries face this abyss and represent it in a variety of ways. Glückl von Hameln’s autobiography can be understood as a prelude to this genre, founded on incomprehension, perplexity and nostalgia for a world impregnated with sense.
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